caminito - Buenos Aires
Se há algo profundamente importante que a antropologia me mostrou, é um modo próprio de viajar. A viagem é o início de tudo, pois é na experiência da viagem que testamos nossos valores. Apenas quando topamos com um verdadeiro desafio cultural podemos enxergar nossa própria realidade, e muitas vezes, dissolve-la no banho ácido do choque de mundos. O lugar é importante porque diz muito de nós e não porque nele descobrimos os “outros”. Aliás, os “outros” são sempre muito mais abstratos que concretos. Servem na maioria das vezes para amplificar diferenças ao invés de pensá-las. Franz Boas dizia que enxergamos com o olho da tradição e sem dúvida acredito nisso. Os costumes que herdamos no seio de nossa família, entre nossos amigos, na cidade onde habitamos em nossa juventude moldam o mundo que vemos. Por isso quando viajamos buscamos “cidades invisíveis” capazes de mostrar aos nossos olhos aquilo que desejamos ver. As cidades nesse sentido acabam funcionando como uma espécie de lâmpada de aladin que após esfregarmos nos concede desejos. ‘O que queres ver meu amo?” - pergunta a lâmpada. E logo dizemos o que buscamos. A resposta no entanto vem na medida certa. Explico. Um dia desses um amigo voltou da Alemanha com fotos de carrões, fábricas, placas de avenidas de altíssima velocidade, entre outras “curiosidades” que não existem no Brasil. Em todas as fotos o que despertava a atenção era a ausência de pessoas e registros de costumes locais. Ao falar das fotos também surgiam relatos incessantes do luxuoso hotel 5 estrelas e dos shoppings e lojas de lá, além das compras que ele havia feito. Isso fez com que eu me perguntasse: ele conheceu mesmo alguma cidade na Alemanha? A resposta não veio de imediato, mas tirou meu sono algumas noites. Obviamente não pelo meu colega, mas por mim mesmo. Na realidade eu me interrogava a respeito do meu modo de olhar. Na mesma época eu havia ido em um encontro com minha namorada à Buenos Aires. De cara escolhemos um hostel ao invés de um hotel. Não que tivessemos nada contra os hotéis, mas queriamos ficar em um espaço onde fossemos obrigados a conviver com outras pessoas. No hostel existem os serviços do hotel, mas alguns luxos são dispensados, você come e lava sua louça por exemplo, pode assistir TV em uma sala compartilhada e acaba se relacionando com outros viajantes. Andamos Buenos Aires inteira de metrô e ônibus e conhecemos algumas pessoas ali que acabaram marcando o lugar. Numa das manhãs no hostel conhecemos Thaís, uma estudante de arquitetura de Bilbao que estuda em Barcelona e conseguiu uma bolsa para a UBA (Universidad de Buenos Aires). Por sua vez, ela nos apresentou a outros amigos e conhecemos (graças a eles) lugares maravilhosos e distantes dos pontos turísticos da cidade. Andamos pela periferia, conversamos com pessoas nas ruas, brincamos com nossos estranhamentos... e quando voltamos as pessoas haviam desenhado uma Buenos Aires muito particular em nossa cabeça. Não trouxemos tantas coisas, mas a mente e o coração vieram recheados. Ontem eu lia um livro muito interessante chamado “comunidade” do sociólogo Polonês zigmunt Bauman. Em um dos capítulos ele fala do que hoje é chamado de “cosmopolitismo”. O “cosmopolitismo” está profundamente atrelado ao individualismo moderno. Define-se pela passagem e nunca pela permanência. Para os “cosmopolitas” os lugares são irrelevantes, pois a graça está em escapar aos limites do mundo sem ter que viver os constrangimentos dos choques culturais autênticos. Ser “cosmopolita” é estar integrado em uma rede de individualidades e isso é o que lhes dá acesso ao “mundo globalizado” onde maitres lhes servem bons jantares e vinhos, arrumadeiras limpam seus quartos e taxistas os transportam sem que eles tenham que saber muito de suas “realidades”. Os “cosmopolitas” também passam pelas alfândegas sem o temor dos trabalhadores ilegais. Onde quer que vão os “cosmopolitas” encontrarão lugares idênticos como Shoppings, hotéis de luxo, aeroportos, academias, convenções e coquetéis, etc. e nesses lugares também é possível falar com outros “globalizados”, mimetizando dessa maneira a experiência cultural. Em uma passagem de seu livro Bauman diz o seguinte: “As viagens dos novos cosmopolitas na são viagens de descoberta. Embora sejam com freqüência descritas como tais pelos viajantes globais e seus biógrafos; seu estilo de vida não é “híbrido” nem particularmente notável por seu gosto pela variedade. A mesmice é a característica mais notável e a identidade cosmopolita é feita precisamente da uniformidade mundial dos passatempos e da semelhança global dos alojamentos cosmopolitas, e isso constrói e sustenta sua secessão coletiva em relação à diversidade dos nativos. Dentro das muitas ilhas do arquipélago cosmopolita o público é homogêneo, as regras de admissão são estritas e meticulosamente (ainda que de modo informal) impostas, os padrões de conduta precisos e exigentes, demandando conformidade incondicional. Como em todas as “comunidades cercadas” a probabilidade de encontrar um estrangeiro genuíno e de enfrentar um genuíno desafio cultural é reduzida ao mínimo inevitável; os estranhos que não podem ser fisicamente removidos por causa do teor indispensável dos serviços que prestam ao isolamento e a auto-contenção ilusória das ilhas cosmopolitas são culturalmente eliminados – jogados para o fundo do “invisível” e “tido como certo”.” (p. 55). Em seu belíssimo livro “As cidades Invisíveis” Italo Calvino, através do viajante Marco Pólo, lança um enigma poderoso que constou na conclusão de minha tese de mestrado. Dizia ele: “as cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem outro bastam para sustentar suas muralhas. De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá as nossas perguntas” (p. 44). Após pensar na experiência “cosmopolita” de meu colega acho que a frase de Marco Pólo deve ser re-pensada, pois as vezes de uma cidade não se aproveitam as perguntas e tudo o que se enxerga é feito de pedras e luzes.
4 comentários:
obrigado pela aula!
gostei muito, fiquei curioso para ler os textos que vc cita.
abraçao!
certeza que muita gente visita seu blog, mas as pessoas não gostam de escrever comentários...
abração!
oi...
sempre passeio pelo seu blogue, leio suas postagens, que aliás são muito inteligentes e boas... Gosto muito de ler o que você escreve...
Essa postagem é belíssima, me fez refletir sobre uma série de coisas...
Sempre volto...
É muito difícil questionar abertamente sem medo de sentir que a resposta levará talvez toda uma vida para ser construída. Espero poder construir algumas respostas possíveis sempre ao seu lado! Te amo!
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