O dilema do portão
“Tem uma visão do portão, do outro lado do portão, o lado que lhe é negado. Ao pé do portão, bloqueando a entrada, há um cachorro deitado, um cachorro velho, a pele cor de leão marcada por inúmeras cicatrizes. Está de olhos fechados, descansando, cochilando. Além dele, não há nada senão um deserto de pedra e areia, até o infinito. É a sua primeira visão em muito tempo, e não confia naquilo, não confia em particular no anagrama GOD – DOG [Deus – Cachorro]. Literário demais, pensa de novo. Um curso de literatura.
“O homem atrás da mesa evidentemente fartou-se de perguntas. Pousa a caneta, cruza as mãos, olha firme para ela. ‘O tempo todo’, diz ele, ‘Vemos gente como a senhora o tempo todo’.” (COETZEE, 2004, p 247)
Ao ler esses dias o romance Elisabeth Costello, de J. M. Coetzee (Companhia das letras, 2004) fiz uma espécie de “limpeza” de meu purgatório ético (mesmo sabendo que daqui ha algum tempo ele estará sujo novamente). Explico: O livro é uma belíssima coletânea de oito palestras mais um desfecho surpreendente onde a escritora Elizabeth Costello (Uma romancista Australiana que havia ganhado notoriedade na juventude com a publicação, sobretudo, de um livro onde resgata os personagens do romance Ulisses de James Joyce) convive o tempo todo em um universo ambivalente, entre o passado e o futuro, a juventude e a idade madura, a ansiedade e o tédio.
Elisabeth vai aos poucos se mostrando, toute nue, ao se defrontar com situações constrangedoras provocadas pelas provações às quais se vê obrigada a passar diante da teatralização gerada pelos encontros intelectuais para os quais é convidada. Os convites sempre remetem ao passado (A escritora, por exemplo, é sempre apresentada como a autora do romance A casa da rua Ecles, o qual escreveu em sua juventude) e nesse sentido, a impressão que temos é a de que o passado se enraizou em seu corpo como um câncer, à medida que a definiu como a escritora de um certo tipo de romance, que marcou certa época e um certo lugar. Mas ela não é mais só a escritora da Casa da rua Ecles. Ela é outra, a figura velha, defensora das causas dos animais, menos encantada, menos satisfeita com as alegorias próprias do papel de “escritora”.
Aos poucos vamos nos deparando com os vários dilemas éticos de Elisabeth (O que nos obriga a lidarmos com os nossos próprios obviamente). Dilemas que a escritora, apesar de seu humanismo, não sabe lidar muito bem. Isso a faz produzir constrangimentos diversos em suas falas, em seus contatos com outros intelectuais, e, sobretudo, em sua relação consigo mesma.
No oitavo capítulo do livro, Elisabeth se vê obrigada a passar pelo mesmo “processo” que um outro personagem (Josef K), de um outro autor (Kafka), admirado e citado algumas vezes pela escritora, se viu obrigado a passar. Vemos ali a grande dificuldade e os grandes dilemas que permeiam todo o livro em estado bruto. Para poder ter acesso ao outro lado do portão (onde parecem estar todas as grandes respostas) Elisabeth é desafiada a descrever algo no qual crê plenamente, e sua dificuldade a denuncia: “Sou uma escritora, uma mercadora de ficções (...) Tenho apenas crenças provisórias: crenças fixas me atrapalhariam. (...) Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível (...) esta é a minha missão (...) Não me compete interrogar, julgar o que me é dado.” Com base nesse pensamento Elisabeth faz a seguinte solicitação: “ Solicito minha isenção da regra de que ouço agora falar pela primeira vez, a saber, que todo requerente ao portão tenha de ter uma ou mais crenças”. (p 216)
A escritora não sabe se portar diante da necessidade de definir suas crenças. Sempre busca o terreno movediço das palavras e expressões literárias. Mas o “mundo”, o “mundo” do portão parece não se convencer delas. É necessário definir-se. De certo modo todos os personagens e até o próprio portão fazem parte de sua consciência. Representam as pressões da cobrança e da subseqüente frustração típicas de nossa “condição humana”, sobretudo no sentido “moderno”. É dura a tarefa de estar sempre com a sensação de se encontrar fora do lugar. Talvez os juristas, empresários, economistas, técnicos saibam melhor lidar com o portão porque acreditam num universo definível, num tempo fixo, em leis que não se alteram. Já os escritores (ao menos os que de fato exercem a atividade mais profunda de questionamento) devem conviver com a necessidade infinita de serem “ponte”, de se colocarem sempre “entre” os lados dos grandes embates, como parece ser o existente entre o que chamamos de “Natureza” e o que vemos como “Cultura”.
Esse purgatório ético é “limpo” quando nos sentimos compreendidos, acolhidos, sustentados. Não há maior nobreza nessa condição. Há maior lucidez, e, talvez maior “liberdade” para lidarmos com nossos piores valores (preconceito, raiva, inveja, etc.), e com a angústia dos mistérios e da conseqüente necessidade da crença, que nos interpela a cada segundo, dada nossa finitude e nossa pequenez. Como já disse Fernando Pessoa: “Se a morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto”
“Tem uma visão do portão, do outro lado do portão, o lado que lhe é negado. Ao pé do portão, bloqueando a entrada, há um cachorro deitado, um cachorro velho, a pele cor de leão marcada por inúmeras cicatrizes. Está de olhos fechados, descansando, cochilando. Além dele, não há nada senão um deserto de pedra e areia, até o infinito. É a sua primeira visão em muito tempo, e não confia naquilo, não confia em particular no anagrama GOD – DOG [Deus – Cachorro]. Literário demais, pensa de novo. Um curso de literatura.
“O homem atrás da mesa evidentemente fartou-se de perguntas. Pousa a caneta, cruza as mãos, olha firme para ela. ‘O tempo todo’, diz ele, ‘Vemos gente como a senhora o tempo todo’.” (COETZEE, 2004, p 247)
Ao ler esses dias o romance Elisabeth Costello, de J. M. Coetzee (Companhia das letras, 2004) fiz uma espécie de “limpeza” de meu purgatório ético (mesmo sabendo que daqui ha algum tempo ele estará sujo novamente). Explico: O livro é uma belíssima coletânea de oito palestras mais um desfecho surpreendente onde a escritora Elizabeth Costello (Uma romancista Australiana que havia ganhado notoriedade na juventude com a publicação, sobretudo, de um livro onde resgata os personagens do romance Ulisses de James Joyce) convive o tempo todo em um universo ambivalente, entre o passado e o futuro, a juventude e a idade madura, a ansiedade e o tédio.
Elisabeth vai aos poucos se mostrando, toute nue, ao se defrontar com situações constrangedoras provocadas pelas provações às quais se vê obrigada a passar diante da teatralização gerada pelos encontros intelectuais para os quais é convidada. Os convites sempre remetem ao passado (A escritora, por exemplo, é sempre apresentada como a autora do romance A casa da rua Ecles, o qual escreveu em sua juventude) e nesse sentido, a impressão que temos é a de que o passado se enraizou em seu corpo como um câncer, à medida que a definiu como a escritora de um certo tipo de romance, que marcou certa época e um certo lugar. Mas ela não é mais só a escritora da Casa da rua Ecles. Ela é outra, a figura velha, defensora das causas dos animais, menos encantada, menos satisfeita com as alegorias próprias do papel de “escritora”.
Aos poucos vamos nos deparando com os vários dilemas éticos de Elisabeth (O que nos obriga a lidarmos com os nossos próprios obviamente). Dilemas que a escritora, apesar de seu humanismo, não sabe lidar muito bem. Isso a faz produzir constrangimentos diversos em suas falas, em seus contatos com outros intelectuais, e, sobretudo, em sua relação consigo mesma.
No oitavo capítulo do livro, Elisabeth se vê obrigada a passar pelo mesmo “processo” que um outro personagem (Josef K), de um outro autor (Kafka), admirado e citado algumas vezes pela escritora, se viu obrigado a passar. Vemos ali a grande dificuldade e os grandes dilemas que permeiam todo o livro em estado bruto. Para poder ter acesso ao outro lado do portão (onde parecem estar todas as grandes respostas) Elisabeth é desafiada a descrever algo no qual crê plenamente, e sua dificuldade a denuncia: “Sou uma escritora, uma mercadora de ficções (...) Tenho apenas crenças provisórias: crenças fixas me atrapalhariam. (...) Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível (...) esta é a minha missão (...) Não me compete interrogar, julgar o que me é dado.” Com base nesse pensamento Elisabeth faz a seguinte solicitação: “ Solicito minha isenção da regra de que ouço agora falar pela primeira vez, a saber, que todo requerente ao portão tenha de ter uma ou mais crenças”. (p 216)
A escritora não sabe se portar diante da necessidade de definir suas crenças. Sempre busca o terreno movediço das palavras e expressões literárias. Mas o “mundo”, o “mundo” do portão parece não se convencer delas. É necessário definir-se. De certo modo todos os personagens e até o próprio portão fazem parte de sua consciência. Representam as pressões da cobrança e da subseqüente frustração típicas de nossa “condição humana”, sobretudo no sentido “moderno”. É dura a tarefa de estar sempre com a sensação de se encontrar fora do lugar. Talvez os juristas, empresários, economistas, técnicos saibam melhor lidar com o portão porque acreditam num universo definível, num tempo fixo, em leis que não se alteram. Já os escritores (ao menos os que de fato exercem a atividade mais profunda de questionamento) devem conviver com a necessidade infinita de serem “ponte”, de se colocarem sempre “entre” os lados dos grandes embates, como parece ser o existente entre o que chamamos de “Natureza” e o que vemos como “Cultura”.
Esse purgatório ético é “limpo” quando nos sentimos compreendidos, acolhidos, sustentados. Não há maior nobreza nessa condição. Há maior lucidez, e, talvez maior “liberdade” para lidarmos com nossos piores valores (preconceito, raiva, inveja, etc.), e com a angústia dos mistérios e da conseqüente necessidade da crença, que nos interpela a cada segundo, dada nossa finitude e nossa pequenez. Como já disse Fernando Pessoa: “Se a morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto”
Nenhum comentário:
Postar um comentário