sexta-feira, 2 de julho de 2010

Algumas palavras sobre "O Visitante"




Um professor universitário desmotivado se vê obrigado a ir até Nova York, onde possui um apartamento há muito tempo desocupado, para apresentar em uma conferência acadêmica um artigo no qual figura como co-autor, mas que sequer havia lido. Lá chegando, se depara com a cena absolutamente kafkiana de dois imigrantes ilegais, um Sírio e uma senegaleza, morando em seu apartamento, que por sua vez, havia sido sublocado por uma outra pessoa da qual nunca ouvira falar. Assim começa "O Visitante". Ao longo do filme somos levados para uma inteseção capaz de dar relevo não à vida de um personagem isolado, tornando-o protagonista de uma sequencia de ações amarradas por um final feliz, mas a um encontro perturbador, que começa no momento em que o professor aceita dividir o apartamento com os dois "hospedes" até que encontrem outro lugar para ficar. Aos poucos o senhor de meia idade, marcado pelo automatismo da vida burguesa passa a sentir uma irresistível atração pela forma como os dois jovens imigrantes encaram a si próprios. O filme não revela, mas imagino que entre seus pensamentos estivesse passando alguma pergunta do tipo: Como tais jovens, em uma condição tão precária e em um país estrangeiro, conseguem viver de um modo tão rico e fascinante (reparem que não uso a palavra "feliz")? Qual é o segredo que carregam consigo? Ao segui-los e permitir a troca de posições, na medida em que se torna "aluno" do rapaz, que passa a ensiná-lo a tocar um instrumento percursivo, o "professor/aluno" se submete não a novas teorias, mas a um outro modo de pensar e experienciar sua relação com o mundo. As aulas, inicialmente tomadas na sala do apartamento , não começam com uma lição técnica/teórica, mas com uma explicação sobre o tempo e a relação que se deve ter com o o próprio corpo. Aquele que invertia os papéis e se tornava "professor" começa dizendo: "Coloque os pés no chão por inteiro, agora coloque o tambor no meio de suas pernas, assim!" O "aluno/professor" ri, pois até então, dentro de sua concepção "moderna", corpo e espírito pareciam coisas completamente distintas, mas o novo "professor" continua e diz: "Então você tira a beirada dele com os tornozelos assim!" e prosegue: "Eu sei que você é um homem muito esperto , mas com o tambor deve se lembrar de não pensar, pensar vai estragar certo?" O "aluno" concorda e o "professor" dá novo prosseguimento à sua "aula". Diz ele: "Agora dê umas batidas" O "aluno" bate de um modo mecânico e o "professor" diz: "Não tão forte, não está bravo com ele". Naquele instante parece que a ficha começa a cair e o "aluno" passa a entender que não está sendo ensinado a tocar um instrumento apenas, mas a perceber o mundo e seu próprio corpo. Mas a "aula" continua e o "professor" fala: "Mais uma coisa: você ouve música clássica, então pensa em quatro batidas, um, dois, três, quatro, este é um tambor africano, então tocará em três. Tem que esquecer a clássica, esqueça!". A partir dai se inicia um ritmo em sua fala que o leva a tocar o instrumento e a coisa se faz. O instrumento se torna o próprio corpo e, consequentemente o mecanismo de comunicação entre ambos e nesse momento a percepção daquele que havia chegado no papel de "professor" e que agora se tornava "aluno" é raptada pelo encontro. Ao colocar seus valores em perspectiva, o mundo também é suspenso. Dai por diante inicia-se uma amizade que é defrontada pela prisão do jovem sírio e que leva aquele que jamais havia se visto em tal condição, a se ver como "estrangeiro" e frequentar o submundo de seu até então "tão nobre" mundo. Há ainda vários outros filmes dentro desse lindo filme, mas entre todos eles o que fica é a idéia de que isso que costumamos chamar de "vida" não se reduz a termos como "eu" ou "outro", mas se encontra nas relações. Trata-se de uma espécie de "visitante" que chega sorrateiramente com perguntas maravilhosamente incômodas e fechar as portas para ele equivale a abraçar a morte, não do corpo, mas da alma. É apenas na medida em que nos ofertamos aos desafios presentes nas perguntas desse ilustre "visitante" que nos tornamos corpo, movimento, encontro, ou seja: vida!

PS: Há quem diga que o filme fala sobre o problema político da imigração. Sem dúvida esse é um dos filmes que podem ser vistos no filme, mas eu prefiro pensar que ele fala das perguntas que os estrangeiros (nativos ou não) trazem para a "política". De todo modo não deixo o trailer do filme (que espero que vejam e que se encontra em um belo texto no blog "Palavras ao Avesso" o qual recomendo), mas uma linda música de Mayra Andrade, de Cabo Verde, cantada em Kriolu, na postagem logo abaixo. Está na hora de aprender a ter um novo pensamento, ops... quis dizer, corpo.

Por Guilhermo Aderaldo

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