segunda-feira, 10 de agosto de 2009



Santiago


Direção: João Moreira Salles


Há algum tempo não visito esse blog. Para sua sorte, não existem poeira ou traças no universo virtual. Bem, hoje o revisito para falar de mais um filme tocante. Contagiado por uma profunda emoção escrevo sobre “Santiago”. Mais um belíssimo documentário de João Moreira Salles. O filme é uma espécie de acerto de contas entre a maturidade e as pulsões arbitrárias da juventude e desta forma trata-se também de uma necessidade ética que o documentarista consagrado tem de fazer justiça a Santiago e a sua própria arte (o documentário). O tema de fundo trata da complexa relação entre João Moreira Salles e Santiago, que havia sido o mordomo de sua abastada e tradicional família. Santiago é um personagem excêntrico e de considerável erudição. Escreveu histórias copiadas de livros sobre a aristocracia e as artes dos mais diversos lugares por mais de 30 anos. Ele também possuía algumas estranhas manias (vejam o filme e entenderão). Ao longo do documentário somos levados ao processo de montagem de uma primeira versão do filme, realizada em 1992, e a narrativa vai à maneira um pincel de arqueólogo retirando preciosidades justamente daquilo que se esconde, dos silêncios, dos ordenamentos e da arbitrariedade exercida pelo documentarista na desesperada ânsia de construir um Santiago que vivia em sua cabeça e silenciar outro que se encontrava a sua frente. A retomada do filme 13 anos depois (em 2005/2006) aponta para um belíssimo desfecho onde revela-se o verdadeiro elo entre história e memória, bem como o único compromisso do documentário: o de dizer algo à própria linguagem documental. Essa passagem também revela o choque entre dois documentaristas com visões opostas. O João Salles 13 anos antes é superado magistralmente pelo João Salles atual. Em um determinado momento do filme, onde vemos a imagem de Santiago, já cansada e distante, repetindo por diversas vezes alguns gestos e palavras imperativamente ordenadas pela voz do diretor ao fundo, João (o de hoje) diz: “Essa é a última filmagem que fiz com Santiago. Ela me permite fazer uma observação final. Não existem planos fechados neste filme. Nenhum close de rosto. Ele está sempre distante. Penso que a distância não aconteceu por acaso. Ao longo da edição entendi o que agora parece evidente. A maneira como conduzi as entrevistas me afastou dele. Desde o início havia uma ambigüidade insuperável entre nós, que explica o desconforto de Santiago. É que ele não era apenas meu personagem e eu não era apenas um documentarista. Durante os 5 dias de filmagem eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo.” Após a fala ouvimos ao fundo uma nova ordem de João Salles para que Santiago retorne à posição desejada por ele e repita o gesto realizado anteriormente, ao que o homem segue com maestria. Há nesse trecho, uma sensibilidade tocante que nos atenta para o fato de que as disposições perceptivas das pessoas não são dissociáveis da posição que ocupam no mundo social, uma vez que as estruturas mentais por meio das quais apreendemos o mundo são em essência produto da interiorização das estruturas desse mundo. Santiago escrevia histórias de personagens pouquíssimo conhecidos para que eles nunca deixassem de existir e de certa maneira vivia sua própria vida como se fora mais um destes personagens. Em outra passagem João comenta um sonho de Santiago onde ele narra que havia imaginado ser um nobre na corte francesa em plena revolução. De imediato a narração nos aponta para o fato de que até no âmbito mais íntimo de seus sonhos, Santiago parece estar em um lugar incerto (como o que ocupou durante toda a vida na casa de Salles, uma vez que, se destacava dos demais empregados, mas sem nunca ter tido a oportunidade de deixar de lado sua posição de mordomo). Pegando carona neste lindíssimo documentário, lembro que no momento em que meu avô se encontrava internado, pouco antes de sua morte, desejei fazer algo parecido com ele e cheguei inclusive a filmá-lo com uma pequena câmera no hospital, entrevistando-o. Tempos depois, ao ver um trecho de uma das cenas não suportei muito tempo, dada a dor provocada pela abertura da ferida de sua ausência. Sinto que de certo modo João fez isso para mim, mas isto não me alivia de uma necessidade cada vez mais latente que me impulsiona ao desejo de emocionar mais do que pensar as relações simbólicas por trás das emoções (que é o que faço como antropólogo). Há uma imagem tocante que me emociona com muita freqüência, que é a imagem do momento em que o escritor José Saramago termina de assistir ao filme “Ensaio sobre a Cegueira” de Fernando Meirelles. Após vê-lo, o escritor chora e agradece a Fernando por tê-lo permitido vivenciar aquele momento. Sempre me emociono com a passagem porque acho que ali se estabelece o nexo mais belo da vida. Um desses momentos em que parece ocorrer um pequeno milagre, onde as pessoas deixam de ser “indivíduos” e os outros “outros” e se estabelece entre os que partilham esse sentimento, uma espécie de ponte. Algo “entre” passa a mostrar-se de forma mais plena e com uma clareza que o cotidiano costuma apagar. As significações então passam a compor uma imagem onde tudo se mistura como numa tela de William Turner. O filme de João Salles é uma verdadeira prova do domínio que este fabuloso diretor tem de sua arte e do significado que algumas camadas de pele morta e tropeços podem ter para o valor que atribuímos às nossas vidas.

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