sábado, 20 de dezembro de 2008






Olá amigos. Há pouco tempo atrás recebi de uma amiga (valeu Dri!) algumas fotos de umas oficinas sobre o olhar antropológico que ministrei entre jovens de uma área da periferia de São Paulo (Comunidade Vila Progresso em São Miguel Paulista). Foi um encontro muito importante para mim. Aprendi muito com aqueles garotos e não perderei a oportunidade de reverenciá-los e agradecê-los aqui pela oportunidade que me deram para aprender. Muito obrigado pessoal e toda a força!!!! Segue abaixo o texto (obviamente não seguido) de minha apresentação no projeto:


O olhar no espelho: construindo um conhecimento sobre os sentidos da "realidade"
29/10/2008


1. uma breve introdução


Para iniciar essa conversa pensei em diversas estratégias, como passar pelos autores consagrados da Antropologia, falar das pesquisas que fiz na universidade, abordar de forma genérica todas as áreas das humanidades (jornalismo, Ciências Sociais, História, Geografia, etc.), e a conclusão a que cheguei após pensar bastante foi a de que, mais importante do que falar de questões pontuais, seria falar do universo comum entre todas as áreas ligadas às ciências humanas, destacando, obviamente, as questões importantes para a Antropologia, que é minha área de formação.

Acredito que os problemas que discutirei aqui, com vocês, são de interesse comum a todos nós pelo simples fato de existirmos num mundo onde os valores, direitos e oportunidades são distribuídos desigualmente e onde, por esse motivo, muitas vezes sentimos dificuldade de compreender o lugar que ocupamos nesse mundo.

Bem, então, antes de falar mais propriamente do trabalho do antropólogo (que é o estudioso das relações culturais) é importante que possamos compreender o que é cultura. Como a Antropologia vê a cultura? Como essa ciência, de nome esquisito usa a cultura como seu objeto de estudo? E para irmos direto ao ponto, é possível enxergarmos o significado desse termo (“cultura”) fazendo uma pergunta bastante simples. Qual a diferença entre estudar uma sociedade de formigas ou abelhas e uma sociedade humana? Através da resposta a essa pergunta chegaremos com certa facilidade ao significado da noção de “cultura”. Vejamos então.

Entre as formigas, ou as abelhas é clara a existência de uma sociedade, na medida em que existe uma totalidade ordenada de indivíduos que atuam coletivamente na construção e conservação da colméia ou do formigueiro, no entanto, não há cultura, porque não existe uma tradição viva, elaborada de forma consciente e transmitida através das gerações por meio de obras de arte, de filiações religiosas, de organizações econômicas, etc.

Sem uma tradição é possível, portanto, a existência de uma coletividade, mas não de uma consciência do próprio estilo de vida. (um formigueiro no Brasil, no México, na Suécia, na Rússia e no Quênia se configura exatamente da mesma forma) Assim, ter consciência de que se faz parte de uma “cultura” é poder se diferenciar de outras formas de vida, definindo dessa maneira aquilo que nós somos (ou queremos ser) e aquilo que os outros são e, logicamente, nós não devemos ser.

Para podermos entender melhor a noção de “cultura” e os processos de diferenciação criados pelos homens, devemos levar em consideração o fato de que os humanos são capazes de criar uma ordem de existência e organização social que não é simplesmente natural (física, biológica, etc. como é o caso das formigas e abelhas, que trabalham por uma espécie de obediência natural de seus instintos). Essa capacidade é o que chamamos de ordem simbólica. Para que possamos entendê-la basta pensarmos na diferença entre um copo de água em estado natural e outro copo contendo água benta. O conteúdo físico-químico existente nos dois copos (H2O) é exatamente o mesmo, mas o sentido atribuído ao segundo o diferencia (simbolicamente) diante do primeiro por suas propriedades divinas (para aqueles que acreditam nelas). Se oferecermos a água de ambos os copos a um animal, ele certamente não notará a diferença. Portanto, o que nos diferencia dos outros animais é a nossa capacidade de simbolização e diferenciação.

Dito isso, podemos dar um segundo passo em nosso raciocínio, que é o seguinte: se os homens são capazes de se relacionar por meio de símbolos, isso significa que a “cultura” é a invenção de uma ordem simbólica, capaz de permitir o relacionamento com o estranho, ou com o ausente (como a morte, por exemplo. Entre as formigas não há velórios ou outros rituais fúnebres, como ocorre entre nós). E é o modo como essa “relação” é construída que faz com que a “realidade” ganhe significados distintos de acordo com os diferentes contextos culturais. Assim, estudar as relações culturais significa estudar não a diferença, em si mesma, mas a forma como os homens a constroem e formulam diferentes significados às suas vidas. Através disso, podemos entender os motivos por trás dos grandes conflitos religiosos, étnicos e sociais, e, dessa maneira, podemos chegar a uma compreensão mais rica acerca de nós mesmos e da relação que mantemos com o ambiente no qual vivemos e com as pessoas que compartilham conosco esse ambiente. Isso porque é quando vejo um costume diferente que acabo reconhecendo, por contraste, o meu próprio costume.


2. Como e por que pensar a "cultura"?


Por que, então, devemos estudar as diferentes manifestações culturais? Alguém pode me dar alguma opinião sobre isso?

Existem certos preconceitos socialmente difundidos, como o de que existem pessoas “cultas” e “incultas”, ou ainda a idéia de que há uma “natureza humana” e essas são questões bastante complicadas para a antropologia. Isso porque ao repararmos nas várias sociedades humanas conhecidas pelo mundo, vemos costumes extremamente diferentes daqueles que entendemos como “naturais”. Há sociedades em que os homens cuidam da casa e as mulheres fazem o serviço pesado, há outras onde os filhos de uma mulher deverão ser criados por sua irmã, ou pela irmã do seu marido, além de vários outros exemplos, como casos onde os homens têm várias esposas, ou ainda o inverso, ou seja, as mulheres possuindo mais de um homem. Exemplos como esses fazem com que várias de nossas crenças e costumes deixem de ser vistos como “naturais”.

Assim, não podemos reduzir a “cultura” à posse de certos tipos de conhecimento, como o nível de estudo ou o gosto por determinados tipos de música, espetáculos, etc. Pois a “cultura”, no sentido antropológico, é a maneira pela qual os humanos constroem suas identidades grupais através de práticas capazes de criar as “regras” da vida social (do que é permitido e do que é proibido, do sagrado e do profano, do que é puro e do que é impuro, etc.). Desse modo, não devemos falar nem mesmo em “cultura”, mas sim em “culturas” no plural. O que tiramos disso então é a lição de que todos os humanos são “cultos”, pois são seres culturais. A escola, as artes, a filosofia, a ciência, etc. são efeitos da vida cultural, de um tipo de organização social específico, portanto, e não a expressão de uma “cultura superior”.

Para estudar as “culturas” o antropólogo geralmente realiza a etnografia, que é o trabalho de passar grande quantidade de tempo junto às populações que se deseja estudar, reparando em seus costumes, valores e no modo como há uma lógica própria na maneira através da qual as pessoas orientam suas ações cotidianas. Nunca devemos ler uma “cultura” a partir das regras de outra. Assim, por exemplo, não é porque em nossa sociedade as mães costumam criar os filhos que temos o direito de condenar os grupos onde isso não é uma prática corrente, entre várias outras diferenças. O que os antropólogos buscam, então, é entender de que forma as pessoas localizadas em diferentes tradições culturais se utilizam dos mecanismos simbólicos que as diferenciam dos “outros” no mundo para construírem um universo de sentido para si próprias? Explicando de outra forma, trata-se da busca pelo entendimento do modo através do qual as diferentes sociedades humanas, conscientes de suas diferenças em relação a outros grupos, ao entrarem em contato com outras sociedades, desenvolvem respostas internas para valorizarem suas formas de entender e ordenar o mundo. É a resposta a essa pergunta que nos permitirá compreender o modo como nossa própria sociedade age, pensa e se organiza, criando um espaço para que possamos “relativizar”, ou seja, deixar de ver como “naturais”, certos atos que nós acostumamos a ver desde crianças como sendo uma expressão da “normalidade”, por exemplo, o amor das mães pelos filhos, a idéia de que todos os judeus são avarentos, a concepção de que as mulheres são seres frágeis e sensíveis, porque nasceram para a maternidade, etc.

3. Uma conclusão inconclusa

Como eu vinha dizendo, o trabalho do antropólogo consiste em identificar a forma pela qual as pessoas localizadas em diferentes contextos culturais se utilizam (conscientemente) das diferenças que as marcam em suas relações com os “outros” para construírem um universo de sentido para si próprias. No entanto, o antropólogo também vem de uma “cultura” (com suas crenças e valores particulares), e é nisso que está a riqueza de uma boa pesquisa antropológica. Afinal, o resultado final do trabalho sempre será o registro do encontro e dos choques vividos por cada uma das partes (a do pesquisador e a das pessoas ligadas à região onde ele desenvolveu a pesquisa). Até porque, ao contrário do biólogo, que estuda abelhas ou formigas, por exemplo (e que, portanto, nunca será questionado por esses animais), o antropólogo pode ser questionado pelas pessoas que estuda (que podem não querer lhe conceder entrevistas, ou até mesmo duvidarem de seus métodos). Desta forma, o sentido da pesquisa antropológica não é chegar a uma “verdade” pura (do modo como estamos acostumados na matemática, onde 2 + 2 = 4), mas sim, construir uma espécie de “ponte de significados”, capaz de permitir que grupos ligados a diferentes “culturas”, possam compreender a lógica que orienta as ações uns dos outros.

Na segunda feira agora, por exemplo, aconteceu um ato interessante nesse sentido. Um grupo de pichadores combinou pela internet um encontro na bienal de arte de São Paulo, para picharem no interior do prédio, enquanto as pessoas acompanhavam a exposição. Muitas pessoas simplesmente classificaram a atitude desses meninos como vandalismo, mas será que é só isso que estava por trás dessa ação? Eu acho que não. Na bienal de arte se encontram obras de todos aqueles artistas reconhecidos por uma “elite” como artistas. (então essas são as pessoas que aparecem na televisão, nos jornais, e que ganham muito dinheiro para fazerem e definirem o que é ou não arte). O problema é que os jovens pichadores, ao entrarem no prédio e picharem as paredes sem se esconderem, estavam reivindicando para eles oportunidades para que também pudessem ser reconhecidos como artistas. A pergunta que fica em suas cabeças é: Por que 3 ou 4 rabiscos em uma tela produzidos pelo artista x é considerado arte e o grafite que faço não? Por que ele pode instalar uma tela aqui e ser visto por milhares de pessoas, ganhando a vida com isso e eu tenho que ficar recluso à minha rua, me escondendo do mundo?

Se checarmos os argumentos desses jovens, veremos que há uma lógica bastante relevante por trás da ação que eles provocaram na bienal, por mais violenta que tenha parecido. Assim, como antropólogos, podemos checar, não qual dos lados está certo, mas sim, o que foi capaz de gerar esse conflito. Se pensarmos nos motivos por trás das diversas práticas de violência e abuso à vida privada das pessoas no Brasil, e levarmos em consideração os vários condomínios fechados, a construção dos diversos shopping centers, a destruição das praças públicas, os vários mecanismos de segurança privada, etc. nós vamos ver que os menos culpados por todo esse estado de coisas são justamente os mais punidos (os que lotam as cadeias), ou seja, as pessoas mais pobres. Também poderemos ver que há uma “cultura do medo” que só faz com que busquemos um isolamento cada vez maior, o que, por sua vez, amplia a violência ao invés de gerar um ambiente favorável à sua contenção.

Existe um pensamento na Antropologia que eu acho muito bonito, que é o seguinte: é a idéia de que as pessoas atuam como uma espécie de espelho, umas das outras. E como isso funciona? Da seguinte maneira: quando eu, por exemplo, encontro uma pessoa, esse contato faz com que eu crie em minha cabeça uma imagem de mim mesmo a partir da forma como eu me percebo aos olhos dela. E isso tem uma relação direta com a nossa auto-estima, ou seja, com a forma como nós olhamos para nós mesmos. (os pichadores do nosso caso, por exemplo, se vêem como vândalos através dos olhos arrogantes dessa “elite” artística e quando “invadem” o espaço “nobre” onde essa “elite” expõe suas obras, tentam mostrar que existem e que para uma boa parcela da sociedade a noção de “arte” não está localizada naquele ambiente e nem se encontra em posse daquelas pessoas, ao contrário do que elas buscam mostrar).

Assim, fazer antropologia é colocar a sua própria maneira de olhar para as coisas diante dos diversos espelhos que as pessoas localizadas em diferentes tradições culturais nos oferecem. Para isso precisamos aprender a ouvir e prestar atenção nas várias possibilidades de interpretação daquilo que nos parece “natural” (aqui mostro o trecho do moinho do filme “Sonhos” de akira Kurossawa ).

O exemplo do moinho, no vídeo que mostrei a vocês me parece bastante interessante para pensarmos como isso, que falei a pouco, funciona. Ali o que temos é o choque de um “homem da cidade” diante do tipo de compreensão que um senhor ligado a uma comunidade muito simples têm da vida e do significado que um convívio harmônico (e não uma competição) com a natureza pode ter para os homens. Aos poucos o “homem da cidade” vai vendo o quanto as coisas que ele julgava como certas e “mais evoluídas” caem por terra, assim como o tipo de conhecimento que ele julgava superior. Todos esses estranhamentos certamente fazem com que ele saia com inúmeros questionamentos a respeito de sua própria sociedade e de seu comportamento diante da vida. Esse caso é muito interessante para entendermos como todos os homens são “cultos”, como eu disse antes, assim como o fato de que a sabedoria não depende do ensino acadêmico, mas sim do modo como nossa “cultura” e as relações sociais nela inscritas nos formam perante o mundo.

por último é importante colocar seguinte: toda "cultura" possui um componente arbitrário que busca apontar para o fato de que os valores que aprendemos nela são "naturalmente" superiores. Assim se nos dermos ao trabalho de tentar aprender as lições que outras "culturas" nos passam, com certeza será muito mais fácil para nós escapar ilesos das armadilhas dessa "sociedade do consumo" do mundo atual, onde as pessoas buscam corpos cada vez mais artificiais (lutando contra o próprio tempo), bens cada vez mais caros (e por isso exclusivos), moradias cada vez mais isoladas, etc. Desvendar a origem dessas violências que vemos todos os dias também é uma tarefa da antropologia, pois nem todas as lições são bonitas como as do filme que acabamos de ver. Mas isso ja é uma outra história, que eu posso contar em outra oportunidade, muito obrigado!


3 comentários:

ART disse...

você tem a maior cara de professor!!

Anônimo disse...

É isso aí, meu professor lindo!!! Tenho certeza de que você encontrou uma maneira de lidar com o conhecimento e com as pessoas muito intensa e, acima de tudo, generosa. Te amo!

Adriana disse...

Oi Gui,
Obrigada você por ter se disponibilizado a este trabalho. Sou muito grata a ti e pode ter certeza que você fez a diferença para muitos(as) dos(as) meninos(as) que te viram e ouviram no dia em que você esteve no Cesomar.
Obrigada pelos comentários e pelas visitas ao meu blogue!
Já vou fazer a alteração por lá do link do seu.
Um beijo grande e mais uma vez obrigada.